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Perder a cabeça

Dá-se assim desde menina é um verdadeiro work in progress da artista fluminense Natali Tubenchlak. O trabalho teve uma primeira exposição, no Rio de Janeiro, em 2017, no Projeto Passagem, no Parque das Ruínas, com curadoria de Gabriela Dottori, e desde então, inúmeras outras edições: no mesmo ano de 2017, também no Rio de Janeiro, foi exposto na forma de lambe-lambe, no Canto da Carambola, em Santa Teresa, com curadoria de Keyna Eleison, com o título de “Dá-se assim, na entrada, na fachada, no muro”; ainda em 2017, na Residência Artística Mutuca 6, na Serra do Espinhaço, em Minas Gerais; no ano seguinte, em outra residência, na Casa Tres Patios, em Medellín, na Colômbia; também em 2018, na Experiência n. 18, intitulada HUMANAL, com curadoria de Cláudio Oliveira, que aconteceu n’A Mesa, no Morro da Conceição; e por fim, em 2019, na Lanchonete <> Lanchonete (Bar Delas), na região da Gamboa, Rio de Janeiro. 

 

A cada vez que foi apresentado, o trabalho se refez, tanto nas técnicas de que se utilizou e no modo como foi apresentado, quanto na maneira como suscitou a participação do público. Gravuras, desenhos, aquarelas, esculturas, lambe-lambe, e, agora, mimeógrafo.

 

Dá-se assim desde menina é um trabalho que, em todas as suas realizações até agora, sempre envolve uma intensa participação do público. E o registro dessa participação se acrescenta ao trabalho como um todo.

 

O título do trabalho é um verso da conhecida canção de Chico Buarque, Geni e o Zepelin. A própria canção já traz nela mesma um contraste que se mantém no trabalho de Natali, entre algo puro e singelo e ao mesmo tempo objeto de enorme violência. Geni, a personagem da canção, é descrita pelo narrador como “menina”, “donzela”, como “um poço de bondade”, “coitada”, “singela”, mas a cidade se refere a ela como alguém que deve ser apedrejada, na qual se deve jogar bosta, em quem se deve cuspir, como alguém que deve apanhar por “dar pra qualquer um”.

 

As singelas bonecas de Natali Tubenchlak trazem de outro modo a repetição desse contraste. Dá-se assim desde menina, segundo a própria artista, se baseia em um antigo jogo de papel com desenhos de meninas; bonecas de papel que são produzidas em larga escala desde o início do século XX. Essas bonecas usam roupas íntimas e estão acompanhadas de um guarda-roupa completo para recortar e vestir.

 

É portanto um brinquedo de papel voltado exclusivamente às meninas, em que a brincadeira consiste em trocar as roupas das bonecas, despindo-as e vestindo-as novamente.

 

As “bonecas” de Natali são originalmente gravuras em metal que representam essas mesmas bonecas já vestidas. Suas roupas são fixas, não mudam, não podem ser trocadas. As bonecas de Natali não aparecem, como no jogo infantil, despidas de roupas, mas despidas de cabeças. 

Por sua intervenção, Natali faz as bonecas perderem a cabeça. Na nova “brincadeira” que a artista propõe, não se trata mais de vestir as bonecas (que já se encontram vestidas), mas de dar a elas alguma coisa no lugar das cabeças. Ela própria inicia o jogo dando às bonecas algumas cabeças, mas sempre deixa outras sem cabeça, para que o próprio público possa se relacionar com esse vazio e propor algo em seu lugar.

 

No lugar das cabeças das bonecas, Natali propõe, a princípio, como um start para o trabalho, cabeças de animais cujos nomes são utilizados, em nossa cultura, para ofender mulheres, tais como cobra, galinha, piranha, vaca, etc. Também plantas, como a jibóia, por ter um nome de cobra, aparece aqui. 

 

Mas logo essa lista é extrapolada e muito outros animais, como elefantes, patos, gatos, etc, e as mais diversas plantas aparecem no lugar das cabeças das bonecas.

 

  Há, portanto, de início, duas ordens de questões aqui postas. Uma primeira, de teor bastante político-feminista, se utiliza da singela brincadeira de meninas para denunciar a violência a que são submetidas as mulheres, na comparação com animais (vaca, piranha, cobra, cascavel, anta, galinha, cadela...). 

Mas algo de outra ordem também aparece aqui: um estranho vínculo entre o feminino e os reinos não humanos: o animal e o vegetal. Por isso, a partir de algum momento, outros animais e plantas, cujos nomes não são utilizados para  ofender mulheres, começam a aparecer no lugar das cabeças faltantes das bonecas (elefantes, gatos, tigres, tucanos, peixes...). O que esses outros animais vêm fazer aqui? Eles vêm de algum modo afirmar o vínculo com o mundo animal e vegetal em geral, mesmo que essa vinculação, de início, apareça com valor pejorativo. 

 

A relação entre o feminino e os reinos animal e vegetal está presente no trabalho de Natali desde suas primeiras pinturas, como Afeto 2 e Sem título, mas se torna extremamente intensa nas séries de gravuras Fauna e Flora, que têm como tema fundamental o devir animal e vegetal do corpo feminino.

 

As bonecas de Natali reatualizam esse devir animal e vegetal de suas pinturas e gravuras iniciais mas ganham um teor mais feminista. Assim como em relação à canção de Chico Buarque, é impossível não ver em Dá-se assim desde menina um sentido político radical. Todavia o trabalho não pode ser reduzido a esse sentido político-feminista. Há nele uma questão de fundo que concerne ao feminino num sentido essencial.

 

Um momento decisivo para entender o sentido  da série é, nesse sentido, aquele em que, no lugar das cabeças das bonecas, começam a aparecer não animais ou plantas, mas imagens das cabeças das histéricas de Charcot. Aqui o work in progress de Natali Tubenchlak atinge um ponto crucial, que faz com que a série de bonecas seja ao mesmo tempo e de modo indissociável tanto um trabalho feminista quanto um trabalho sobre o feminino. O surgimento das histéricas na série mostra que há algo de selvagem nelas, algo que torna natural, quase necessário, que elas surjam, na série, sucedendo as plantas e os animais. As histéricas são talvez a figura paradigmática de uma mulher que perdeu a cabeça e, nesse sentido, nada mais justo que dar à bonica sem cabeça uma cabeça de histérica. Vemos então que as bonecas de Natali reatualizam a questão da histeria de modo no mínimo surpreendente. 

 

Mas eu diria que há um ponto ainda mais radical no trabalho: o que está em jogo nele, acima de qualquer outra coisa, não é tanto o que se coloca no lugar das cabeças ausentes, mas o próprio fato de as bonecas perderem a cabeça. Nesse sentido, o que aparece no lugar das cabeças das bonecas, a cada vez, é importante. Mais o mais importante, talvez, em Dá-se assim desde menina, seja o gesto de tirar a cabeça das bonecas, de fazê-las perder a cabeça, o gesto de dar o vazio da cabeça para que em seu lugar advenha o que quer que seja ou o que quer que se queira.

 

Nos registros fotográficos da intervenção do público sobre os lambe-lambes na residência em Medellín, no lugar das cabeças o público desenhou, por exemplo, jorros de sangue ou escreveu frases como “ya no quiero callar”. 

 

Há, portanto, pelo menos três níveis do trabalho: um primeiro nível político-feminista, que dialoga com o modo como as mulheres são comparadas a certos animais para ofendê-las em sua dignidade humana (bonecas com cabeças de cobras, vacas, galinhas, piranhas...); há um segundo nível, em que esse golpe que vem do outro é assimilado, e há a assunção não pejorativa do vínculo do feminino com o animal e o vegetal (a fauna e a flora) (bonecas com cabeças dos mais diversos animais e plantas, bonecas com cabeças de histéricas); e por fim um terceiro nível, talvez ainda mais radical que os anteriores, que simplesmente apresenta as bonecas sem cabeça, em que o puro vazio, a pura ausência de cabeça é o elemento mais politicamente radical, seja em termos de feminino seja em termos de feminismo. É, não por acaso, esse nível que permite que o público, homem ou mulher, menino e menina, entre em ação e coloque no lugar vazio das cabeças o que lhe vier a cabeça. Desde que, ele possa, também a seu modo, perder a cabeça.

 

Cláudio Oliveira

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